quinta-feira, 17 de maio de 2012

AS CARTAS NA LITERATURA

Igualmente ao resto das atividades profundamente enraizadas no viver cotidiano, os jogos de cartas têm merecido algumas das melhores páginas da literatura universal. Um exemplo disso é a breve mas notável seleção de textos e autores que se listam abaixo.

MIGUEL DE CERVANTES

"--- Eu, senhor Dom Quixote de La Mancha, dou por bem empregada a jornada que com vossa mercê passei, porque com ela consegui quatro coisas. A primeira ter conhecido vossa mercê que foi um grande prazer. A segunda, ficar sabendo o que se guarda nessa cova de Montesinos, com as mutações de Guadiana e as lagoas de Ruidera, que me servirão para o Ovídio espanhol que trago entre as mãos. A terceira, entender a antiguidade das cartas, que já se usavam no tempo do imperador Carlos Magno, como se pode deduzir das palavras que vossa mercê disse que Durandarte pronunciou quando, ao final daquele grande espaço de tempo, esteve falando com o Montesinos, e ele surpreendeu dizendo: "Paciência e a embaralhar." E esta razão e modo de falar não a pôde aprender encantado, mas sim quando não a estava, na França e no tempo do referido imperador Carlos Magno. E esta averiguação me vem de jeito para o outro livro que vou compondo, que é Suplemento de Virgílio Polidoro, na invenção das antiguidades; e creio que no seu não se lembrou de colocar a das cartas, como eu a colocarei agora, que será de muita importância, e ainda mais alegando ser o autor tão grave e tão verdadeiro como é o senhor Durandarte. A quarta é ficar sabendo com certeza do nascimento do rio Guadiana, até agora ignorado pelas pessoas."

Esta contribuição de Miguel de Cervantes à história das cartas e ao conhecimento de suas origens aparece no capítulo 24 ("Onde se contam mil insignificâncias tão supérfluas como necessárias ao verdadeiro entendimento desta grande história"), na segunda parte de O Quixote. Quem fala assim é um personagem chamado o Primo, que dois capítulos antes manifestou "que sua profissão era ser humanista; seus exercícios e estudos, compor livros, todos de grande proveito e não menos entretenimento para a república." Alguns comentaristas indicam que a passagem é um sarcasmo típico de Cervantes dedicado aos humanistas que examinam a origem de todas as coisas, tal como coloca na boca de Dom Quixote: "Há alguns que se cansam em saber e averiguar coisas que, depois de sabidas e averiguadas, não importam em absoluto ao entendimento nem à memória" (capítulo 22). Por outra parte, cabe assinalar que segundo o Dicionário das autoridades (1726), "paciência e embaralhar" é uma frase proverbial para dar a entender que, assim como aquele que joga e não lhe vai bem, o remédio é ter paciência e conseguir mais tempo, embaralhando a sorte ou as cartas, da mesma maneira que quando não acontece o que deseja em seus negócios, não tem outro remédio do que lográ-lo, e ver se pode mudar os meios para consegui-lo."
Numa de suas principais obras de teatro, Cervantes menciona também a "aquele Pierre Papin, o das cartas", que parece se unir com o Nicolás Papin inventado por Covarrubias como o inventor das cartas. Este Pierre Papin aparece em outras obras castelhanas da época como o mestre das cartas por excelência: "...Como esses trapaceiros vivem tudo de noite, como pregadores falsos, e como nunca saem das manchetes de Pierrepapín..." (A picante Justina López de Úbeda).


RINCONETE E CORTADILLO

Este é o título de uma das Novelas Exemplares de Cervantes. Nela se narram as peripécias de dois astutos personagens, sendo uma de suas especialidades o floreio das cartas, isto é, a preparação dos baralhos para ganhar o jogo.

"...O outro vinha descontraído e sem fundos, sendo que no meio parecia um grande vulto e, depois, um pescoço destes que chamam de balões, untado com gordura, e tão desfeito que tudo parecia fiapos. Vinham nele envoltas e guardadas umas cartas de figura ovalada, porque de utilizá-las já estavam gastas as pontas e para que durassem mais aparavam-nas e deixavam-nas com aquele formato..."

"Eu, senhor nobre, sou natural da Fuenfrida... Meu nome é Pedro do Rincón... e saí a cumprir meu exílio com tanta pressa, que não tive tempo de buscar selas. Peguei das minhas jóias as que pude, e as que me pareceram mais necessárias, e entre elas tirei estas cartas (e a este tempo descobriu os que haviam dito, que no pescoço trazia), com as quais ganhei minha vida pelas estalagens e mercearias que existem desde Madri até aqui, jogando o vinte-e-um; e ainda que vossa mercê as veja tão feias e maltratadas, denotam de uma maravilhosa virtude com quem as entende, que não caia um ás debaixo. E se vossa mercê é instruído neste jogo, verá quanta vantagem leva aquele que sabe que tem certo o ás como a primeira carta, que pode servir de um ponto e de onze, que com esta vantagem, sendo o vinte um inventado, o dinheiro fica em casa. Fora isso, aprendi com um cozinheiro de um certo embaixador certas trapaças de loterias, e do parar, a quem também chamam o "anda boba", que assim como vossa mercê se pode conhecer pelo corte de sua vestimenta, assim posso eu ser mestre na ciência da trapaça.
Com isto estou certo de não morrer de fome, porque, ainda que chegue num cortiço, há quem queira passar o tempo jogando um pouco; e disto teremos logo os dois a experiência; armemos a rede e vejamos se cai algum pássaro; quero dizer que jogaremos os dois ao vinte-e-um, como se fosse de verdade, que se alguém quiser ser o terceiro, ele será o primeiro que deixe o dinheiro."

Seguem as apresentações e, ao final, se põem a jogar:

"Seja assim, respondeu Diego Cortado (que assim disse ser como se chamava o menor), e pois nossa amizade, como vossa mercê, senhor Rincón, disse, será perpétua, comecemo-la com santas e louváveis cerimônias."
E levantando-se Diego Cortado abraçou Rincón, e Rincón a ele, terna e firmemente, e logo se puseram os dois a jogar o vinte-e-um com as já referidas cartas, limpos de pó e da palha, mas não de gordura e malícia, e a poucas mãos alçava também pelo ás Cortado, como ainda Rincón, seu mestre."

Depois de depenar um tropeiro, partem em direção à Sevilha, onde encontram Monipodio (chefe de uma confraria de ladrões), um hábil professor de "floreio" junto ao qual prosseguem suas travessas aventuras.


BARALHOS E BRIGAS

Frequentemente as cartas são apresentadas como fonte de discussões, brigas e outros incidentes. Um dado curioso é o fato de que o sentido original do termo "embaralhar" era o de brigar, e com este significado conservou-se o termo em outras línguas como o catalão e o português.
Em Poema del Mio Cid (1123) aparece também a palavra "embaralhar" como sinônimo de brigar. A princípios do século XVI aparece no Amadís de Gaula (1508) com o sentido de misturar e, logo depois, aparece já em História geral das Índias (1535), de Fernandez de Oviedo, referindo-se às cartas:

"E naqueles primeiros tempos de conquista desta e de outras ilhas, os cristãos faziam cartas das folhas do copey, para jogar com elas. [...] Como são grossas estas folhas, suportavam [sofriam, no original] muito bem aquilo que nelas se pintava; e o embaralhá-las, depois que as ajustavam e faziam cartas, não as rasgavam."

Em Arte de marear, de Antonio de Guevara (1539), se pode ler:

"É verdade que algumas vezes burlando dos remadores e marinheiros na embarcação, ao pedir-lhes registros de suas confissões, em seguida eles mostravam um baralho de cartas dizendo que naquela santa confraria não aprendiam a se confessar mas a jogar e a transvazar."

Em Tesouro da língua castelhana, de Covarrubias (1611), afirma-se:

"Os que jogam cartas chamam baralho o número delas com que jogam, por ser ocasião de disputar uns com outros, desejando cada um ganhar, e o misturar umas cartas com outras chamam embaralhar."

Enquanto que Luque Fajardo, em sua obra Fiel desengano contra a ociosidade e os jogos (1603) assinala:

"... pois a dicção e nome baralho sinônimo são, ou o mesmo significa, que pleito, discórdia, rixa e contenda, como se diz em nosso romance castelhano, quando alguns estão discordando: "Não tenhais baralhos", Sendo que se adapta muito bem o nome, e vem a calhar baralho à carta. Diz a experiência, e os trapaceiros sejam testemunhas desta verdade, seus contínuos pleitos, tramas, altercações, enganos, trapaças, pesadelos, brigas, injúrias, feridas e mortes, com os demais desastres, desaforos e desgraças que continuamente são vistos nas casas de jogos, as demandas e querelas postas nos tribunais sobre o caso, uns pedindo restituição de dinheiro, outros por desagravo. De forma, Florino, que o baralho é instrumento comum da discórdia, munição de uma guerra civil entre vizinhos, mensageiros de rebeliões e motins, intérprete que rompe as pazes, transgredindo à suas capitulações."

O uso indistinto da palavra "embaralhar" referindo-se tanto a brigar como às cartas é mantido ao longo do Século de Ouro e, em alguns casos, criam-se jogos de palavras como as que podem ser lidas nos exemplos a seguir:

Sempre ajuda a verdade (1635)
(atribuído a Tirso de Molina)

"Mas já veio um cavalo
que pela posta correndo
deu aviso ao Rei que perdia,
carta branca todo jogo,
e antes que o outro triunfasse,
meteu-se o Rei pelo meio;
e então não haverá mais baralhos,
ainda que se prossiga o pleito."

El Criticón (1653)
(Baltasar Gracián)

"... de fato, a um encontraram um baralho. Mandaram em seguida queimar as cartas pelo perigo de contágio, sabendo que os baralhos ocasionam baralhos e todas as maneiras obsessões, embaralhando a atenção, a modéstia, a gravidade e talvez a alma. Mas, no que os encontraram, com todos os trapaceiros, que é a quarta geração, lhes revolveram as fazendas, as casas, a honra, o sossego para toda a vida.

"Aqui vieram muitas cartas feitas pedaços, espalhados pelo chão, e pisados seus cavalos e reis.
- Já me parece - disse Andrenio - que te ouço exagerar uma grande batalha que aqui se deu a grande vitória.
- Pelo menos, não me negarás - replicou o Valeroso - que teve baralhos, que sempre se compõem de espadas e ouros, e logo andam os naipes. Não te parece que foi grande o valor daquele que, colhendo entre suas duas mãos um baralho, todo junto, o cortou todo de uma só vez?

Escritos recolhidos dos talentos espanhóis mais clássicos (1691)
Baile das pintas

"Trago certa comissão
na que os trapaceiros mandam
que castigue alguns jogos,
porque tiveram baralhos.


METER-SE EM BARALHO

Esta expressão se utiliza no sentido de descartar-se de cartas inúteis e devolvê-las ao maço. Assim se pode ler na obra intitulada Leis e constituições do jogo do homem (1669):

"Se alguém se meter em baralho antes de ter dito todos que passam, ainda que só faça por suas cartas em cima das quatro que restam, e se tivesse quem se fizesse homem, julgamos e mandamos que as cartas do que fizesse tal ferro fiquem no baralho, [...] Que nenhum se meta no baralho dando-se por condenado na reposição, e se o fizer, fique condenado a repor outra galinha mais, e os três jogadores prossigam a mão, sem que o que se tivesse se metido no baralho possa voltar a tomar suas cartas."

Ainda que se emprega no sentido figurado de meter-se em disputas, como se lê, por exemplo, no seguinte texto Auroras de Diana, de Pedro de Castro y Anaya (1631), no qual esta frase aparece junto a outras metáforas com cartas:

"Existe coisa mais divertida que um cristão meter-se em baralho com os do outro mundo, sem andar adivinhando se pinta ou não pinta o tifo? Pois no final das contas o Físico mais bem barbeado de juízo, com quatro trapaças de Averroes e quatro flores de Dioscórides, nos vem a despintar a saúde e o dinheiro."

No sentido anterior, a expressão também se usa com o substantivo em plural ("meter-se em baralhos"). Por outro lado, no vocabulário de refrãos e frases proverbiais de Gonzalo Correas se encontra outro significado metafórico desta expressão:

"Meter-se em baralho é retirar-se com os inúteis, como as cartas excluídas que se metem no baralho. Fala-se dos velhos e das velhas que deixaram já a juventude e que lhes acabaram o frescor e a formosura, que estão metidos no baralho."


A RAINHA DE COPAS

As cartas e os jogos tem sido utilizados também em muitas obras literárias para descrever um estilo ou situação. Da mesma forma foram usadas como cenário onde se desenvolve uma ação ou, ainda, como acessório. A linguagem das cartas e suas expressões têm sido excessivamente empregadas no sentido metafórico (por exemplo, nas expressões típicas "por as cartas sobre a mesa", "rasgar o baralho" etc.) As mesmas cartas, têm sido inclusive, em certas ocasiões, personagens literários. Assim ocorre no típico conto inglês em forma de versos A rainha de copas:

The Queen of Hearts,
She made some Tarts,
All on a Summer's Day.

The Knave of Hearts,
He stole those Tarts,
And took them right away.

The King of Hearts,
Called for those Tarts,
And beat the Knave full sore.

The Knave of Hearts,
Brought back those Tarts,
And wowed he'd steal no more.


A rainha de copas,
fez umas tortas,
durante um dia de verão.

O valete de copas,
roubou estas tortas,
e as levou.

O rei de copas,
reclamou as tortas,
e deu uma surra no valete.

O valete de copas,
devolveu as tortas,
e prometeu nunca mais voltar a roubar.


A primeira versão destas rimas foi publicada no The European Magazine em 1782.


ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

2 comentários:

  1. Olá!

    Achei seu Blogue um Blogue muito interessante e bem documentado

    Adoro o mundo dos Naipes!!

    Abraço

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    1. Obrigado! Espero que curta bastante a documentação que estarei publicando. Abs

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