domingo, 19 de fevereiro de 2012

AS CARTAS NO EXTREMO ORIENTE



LENDAS


Quando a História não apresenta provas - a favor ou contra - de determinada explicação de um acontecimento, costumam aparecer lendas. A história da humanidade está repleta de lendas: a de Rômulo, Remo, a loba e a fundação de Roma é um excelente exemplo. A falta de provas concretas sobre as origens e a evolução das cartas de jogar também provocou, ao longo dos séculos, o surgimento de inúmeras lendas.
A primeira delas origina-se dos míticos aposentos interiores do palácio do imperador da China. Desde os tempos da dinastia Chu (112-255) até os da dinastia Sung (950-1279), o imperador da China não tinha simplesmente uma mulher. Esse papel era compartilhado por uma imperatriz, três consortes, nove esposas, 27 concubinas e 81 ninfas ou auxiliares de concubina. Cada grupo dessas mulheres tinha acesso ao leito do imperador proporcionalmente a seu número. Assim, a imperatriz tinha o direito de passar apenas uma noite com o supremo monarca; as três consortes e as nove esposas permaneciam com ele também uma noite, mas somente uma por grupo; as concubinas e as ninfas visitavam o soberano em grupo de nove, três noites para três grupos de concubinas e nove noites para nove grupos de ninfas. Observe-se que a relação dos grupos baseava-se no número 3, considerado de grande importância para os astrólogos da antiga China.
A participação em cada um desses grupos não era vitalícia. Os postos iam sendo renovados regularmente, sem que as antigas eleitas abandonassem seus aposentos no harém. Além disso, todas elas tinham empregadas que as atendiam, motivo pelo qual chegaram a viver no palácio imperial mais de 3 mil mulheres sem muita coisa a fazer. É obvio que o tédio era uma constante. É exatamente nesse contexto que a lenda situa a origem das cartas de jogar e, inclusive, especifica o ano de 1120 como a data de sua invenção, embora não se refira ao nome do inventor ou inventores.
Em favor dessa explicação, assinale-se que, além do tédio permanente e da imperiosa necessidade de entretenimentos e de novidades entre as mulheres do harém, o imperador Hui, cujo reinado transcorreu entre os anos de 1100 e 1125, era um excelente pintor e calígrafo. Graças a essas qualidades, ele teria podido apoiar a iniciativa surgida no harém e, com seu prodigioso pincel, colaborador com ela. Além disso, esse período foi um dos mais interessantes no que se refere à impressão xilográfica na China.



Uma segunda lenda atribui a invenção das cartas de jogar à esposa de um irrequieto marajá da Índia. O tédio da nobre dama transformou-a em uma pessoa terrivelmente irritável, a quem desagradava, em especial, a mania que seu marido tinha de ficar arrancando fios de barba. Para terminar com esse péssimo hábito do marajá, pensou em fazer com que ele mantivesse as mãos sempre ocupadas. Segundo a lenda, foi assim que a dama indiana inventou as cartas de jogar.


KHANHOO WILKINSON E CULIN


Dois importantes estudiosos da origem das cartas na China, sir William Khanhoo Wilkinson (1858-1930) e Stewart Culin (1858-1929), concordam em afirmar que elas chegaram àquele país procedentes da Coréia. Durante muitos anos, Wilkinson foi cônsul da Inglaterra na China e, ao longo desse período, além dos trabalhos relacionados à diplomacia, dedicou um enorme esforço ao colecionamento e ao estudo das cartas e dos jogos chineses. Ele publicou diversas obras a respeito, entre as quais podem ser mencionadas O jogo do khanhoo e Sobre a origem chinesa das cartas européias. Por sua vez, Stewart Culin foi diretor do Museu de Arqueologia e Paleontologia da Universidade de Pensilvânia. Especialista em etnologia, ele se interessou em particular pelos jogos asiáticos. Entre suas obras destacam-se Jogos coreanos, Os jogos de apostas dos chineses e Xadrez e cartas.
Segundo a descrição de Culin, o baralho coreano normal constituía-se de oito naipes de dez cartas cada um, embora, em função do número de jogadores, os naipes pudessem ser reduzidos a seis, ou mesmo a quatro (tal como se costuma fazer no pôquer, em que o número normal de cartas do baralho pode ser modificado em função do numero de participantes do jogo). Os oitos naipes do baralho coreano chamavam-se sa-ram (homem), moul-ko-ki (peixe), ko-makoui (corvo), koueng (faisão), no-ro (antílope), pyel (estrela), htoki (coelho) e mal (cavalo). As cartas eram feitas de estreitas tiras de seda, de aproximadamente 1 centímetro de largura e até 20 centímetros de comprimento. A de maior valor em cada naipe era o general (tiyyang).
As cartas chinesas, ao contrário, apresentavam-se em maior variedade de formas e, embora em geral lembrassem as coreanas, eram um pouco mais curtas e mais largas. Os baralhos chineses mais comuns eram o kwan-pai, que tinha três naipes, e o lu-tchi, de quatro naipes. Cada naipe desses baralhos compreendia nove cartas numéricas - do um ao nove - e uma figurada. As cartas não continham ilustrações ou apresentavam um padrão de losangos. Às vezes, usavam-se certos sinais repetidos nos dois extremos da carta, de modo que, na prática, elas eram reversíveis.
A forma e alguns símbolos utilizados nas cartas coreanas levaram os mencionados especialistas a concluir que elas originalmente foram uma transposição das flechas usadas para finalidades de adivinhação. A forma alongada e algumas semelhanças na constituição dos baralhos, bem como nos nomes de alguns naipes, constituem as principais provas dessa evolução.
Embora não tivesse determinado uma época precisa para a criação dos baralhos coreanos, Culin observou que algumas das figuras dos baralhos chineses que derivaram dos mesmos inspiravam-se em personagens de um romance escrito por Shi-nai-ngan durante a dinastia Yuan (1280-1368). Essas teriam sido as cartas que chegaram à Europa e que se tornariam a base dos baralhos desenvolvidos nesse continente; Há estudiosos que não concordam com esse suposição pelo fato de não se ter encontrado nenhuma prova física da evolução de um baralho oriental para um ocidental. Mas há um forte argumento contra tal objeção: para muitos especialistas, o que viajou para o Ocidente não foi propriamente o baralho, mas a sua descrição, que teria sido interpretada de modo diferente nos diversos países. Seja como for, em todos eles se manteve o conceito de variados naipes compreendendo, cada qual, uma série de cartas numéricas "chefiadas" por poderosas figuras (os reis).


ÍNDIA


Já na mais remota Antiguidade, os povos que habitavam o vale do rio Indo desenvolveram uma florescente cultura , refletida também em seus jogos. As cartas indianas tinham uma concepção muito diferente das sino-coreanas, o que demonstra claramente que suas origens eram distintas. Enquanto a cor não se destaca especialmente nas cartas chinesas, as indianas surpreendem por sua exuberância cromática. As cartas chinesas são alongadas e inspiram-se no dinheiro e em outros símbolos materiais; as indianas, ao contrário, são redondas e baseiam-se nos avatares (reencarnações) de Vishnu, o  deus que com Brama e Siva forma a sagrada trindade hindu - Vishnu encarna a origem do universo e de todos os deuses, que não seriam mais do que emanações ou diferentes aspectos seus.




As cartas indianas tem de 3 a 10 centímetros de diâmetro e se distribuem em oito ou dez naipes, cada qual composto por dez numéricas e duas figuradas de maior valor. Elas são formalmente tão diferentes das européias que não podem ser consideradas predecessoras destas. No entanto, Hanumant, o deus-macaco que é um dos protagonistas do sétimo avatar, empunha, com suas quatro extremidades, uma copa, um cetro, uma espada e um anel. Em outro avatar, Ardhanarisvara - figura formada em parte por Siva e em parte por sua noiva Devi - segura em suas quatro mãos uma copa, uma espada, uma moeda e um bastão. Observa-se uma semelhança dos símbolos ostentados por esse deuses com os dos naipes do baralhos espanhol, italiano e português. Sem dúvida, é possível que a descrição das cartas indianas tenha servido como inspiração para os naipes desses baralhos europeus.
Curiosamente, hoje podem ser encontrados baralhos indianos com cartas circulares, igualmente baseados nos avatares de Vishnu, mas com os símbolos típicos dos baralhos inglês e francês - paus, ouros, copas e espadas - distinguindo quatro de seus naipes.


PÉRSIA


Os antigos baralhos persas tinham cartas retangulares, com um tamanho semelhante ao das européias atuais (cerca de 6 centímetros de altura por aproximadamente 4 de largura).
Elas eram feitas de marfim ou de cartão envernizado e suas figuras, entre muitos outros temas, representavam bailarinas, reis e rainhas, em seus tronos e leões, devorando serpentes, todos desenhados em fundos de cores vivas. Muitas vezes, os baralhos eram compostos por 96 cartas distribuídas em oito naipes, que se diferenciavam pela cor do fundo. A única relação que se pode estabelecer entre as cartas persas e as européias está em um dos jogos que se praticavam com aquelas, o as nas, que teria sido o antecessor de vários jogos de aposta, entre os quais o pôquer.


JAPÃO




O baralho típico do Japão, o hana-karuta (jogo das flores), é relativamente recente, provavelmente dos séculos XVI ou XVII, e merece uma menção especial pela proximidade geográfica desse país com a China e a Coréia. Ele se compõe de 48 cartas distribuídas em doze séries de quatro cada uma, representando os doze meses do ano: matsu (pinheiro), janeiro; ume (ameixa), fevereiro; sakura (cereja), março; fuji (glicínia), abril; ayama ou shobu (lírio), maio; botan (peônia), junho; hagi (trevo), julho; susuki (céspede), agosto; kiku (crisântemo), setembro; momiji (bordo), outubro; yanaki (salgueiro), novembro; e kiri (paulonia), dezembro. Por influência dos colonizadores portugueses, essas cartas adotaram os símbolos de ouros, copas, espadas e bastões, transformados pela peculiar sensibilidade artística do povo japonês.

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